Por Felipe Lima
Dos pés ao fio de
cabelo propositalmente desalinhado, o herói clássico do cinema estadunidense
nunca foi uma pessoa transgênero. As histórias filmadas para cativar, para nos
abrir janelas para novos mundos – e, não menos importante, para fazer toneladas
de dólares –, quase sempre trazem personagens homens cisgêneros para quem os
holofotes estão todos virados. Independentemente de qual faceta do herói a
personagem vai assumir, é sempre assim. Mesmo o estouro das heroínas no cinema
é uma coisa recente. Mas quanto a pessoas trangêneros: são uns gatos-pingados
quase inexistentes.
Em Tangerine, os heróis tradicionais não
existem. O filme independente, lançado em 2015 e dirigido por Sean Baker, leva
para as telonas um pouco do cotidiano de duas mulheres negras transgêneros. A
história de Sin-DeeRella (Kitana Kiki Rodriguez) começa pouco tempo depois que
ela sai da prisão, quando reencontra sua amiga Alexandra (Mya Taylor). Enquanto
conversam, Alexandra deixa escapar que Chester (James Ransone), com quem
“Sin-Dee” tinha um relacionamento amoroso antes de ser detida, está mantendo
relações sexuais com uma mulher cisgênero, uma “mulher de verdade”, segundo
Alexandra.
Consternada e decidida
a se vingar, Sin-Dee parte numa busca que vai colocar toda trama em movimento.
Sua jornada pela cidade tem como objetivo encontrar Chester e a suposta amante dele.
Seguindo os passos das protagonistas, encontramos na tela lados de Los Angeles
que não estamos acostumados a ver nos filmes de Hollywood.
Com uma visão
documental e intimista, Tangerine
mostra a realidade de muitas mulheres transgêneros que vivem no submundo da
prostituição. Um filme divertido e bonito, em que a contestação e a tristeza
aparecem, quase sempre, nas entrelinhas.
Aqui, o desafio
encarado pelo diretor é amplificado. Elaborar uma história que quebre com os
arquétipos tradicionais do herói do cinema hollywoodiano não é fácil.
Igualmente, inserir protagonistas transgêneros sem fetichizá-los ou tratá-los
como algo “exótico”, muito distante do nosso cotidiano, não é tarefa simples. Mesmo
as próprias questões sociais, que surgem naturalmente quando falamos de gênero,
aparecem de maneira aparentemente secundária, já que a trama principal trata da
busca vingativa por Chester e sua amante.
Em suma, o enredo
movimenta-se em torno de uma traição. Um tema bastante abordado no cinema, base
para qualquer filme, genérico ou não. Tangerine
poderia ter protagonistas de qualquer gênero ou orientação sexual. Acontece que
existe outro tema no filme, um mais subjetivo: a aceitação. O primeiro é o que
vai mover a trama, é objetivo, faz a ação acontecer, é um gancho para o segundo
tema. O segundo, a aceitação social e individual das personagens transgêneros,
está ali, no cenário, nos diálogos, nas roupas e tem uma relação quase simbiótica
com o primeiro tema.
Tangerine é
um filme bom, com um humor dramático cativante e divertido, e suscita vários
questionamentos sociais — que aparecem algumas vezes de forma escancarada e
outras sutilmente: exemplo disso é quando um dos personagens é considerado gay
por se relacionar com uma mulher trans. mas não espetacular. Mas não é um filme
espetacular. Ainda, a produção tem um grande mérito técnivo: foi filmado com
apenas três iPhones 5s. Muito bem recebido pela crítica, Tangerine foi indicado para diversas premiações e conseguiu vencer quatro
delas.
Apesar de filmes como
esse ficarem juntando poeira em alguma salinha da história do cinema, a
esperança é que ele abra as portas para que outros diretores como Sean Baker
sigam para além dos círculos do cinema independente. Sem a maquiagem de
Hollywood, Tangerine mostra o mundo
como ele é, nu e cru, e nos diz o quanto precisamos evoluir como seres humanos (vide
as recentes ondas retrógradas e conservadoras). É um filme de personagens que
não são a claridade azul do meio-dia nem a escuridão celeste da noite. São
não-binárias. São tons quase infinitos de tangerinas.
Veja o trailer:
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