quarta-feira, 1 de novembro de 2017

As heroínas trans de Tangerine

Descrição para cegos: silhueta contraluz em que, no canto direito, são perceptíveis as 2 personagens principais do filme andando por Los Angeles à tarde. Em segundo plano, aparecem uma fileira de palmeiras e postes de luz.
Por Felipe Lima

Dos pés ao fio de cabelo propositalmente desalinhado, o herói clássico do cinema estadunidense nunca foi uma pessoa transgênero. As histórias filmadas para cativar, para nos abrir janelas para novos mundos – e, não menos importante, para fazer toneladas de dólares –, quase sempre trazem personagens homens cisgêneros para quem os holofotes estão todos virados. Independentemente de qual faceta do herói a personagem vai assumir, é sempre assim. Mesmo o estouro das heroínas no cinema é uma coisa recente. Mas quanto a pessoas trangêneros: são uns gatos-pingados quase inexistentes.

Em Tangerine, os heróis tradicionais não existem. O filme independente, lançado em 2015 e dirigido por Sean Baker, leva para as telonas um pouco do cotidiano de duas mulheres negras transgêneros. A história de Sin-DeeRella (Kitana Kiki Rodriguez) começa pouco tempo depois que ela sai da prisão, quando reencontra sua amiga Alexandra (Mya Taylor). Enquanto conversam, Alexandra deixa escapar que Chester (James Ransone), com quem “Sin-Dee” tinha um relacionamento amoroso antes de ser detida, está mantendo relações sexuais com uma mulher cisgênero, uma “mulher de verdade”, segundo Alexandra.
Consternada e decidida a se vingar, Sin-Dee parte numa busca que vai colocar toda trama em movimento. Sua jornada pela cidade tem como objetivo encontrar Chester e a suposta amante dele. Seguindo os passos das protagonistas, encontramos na tela lados de Los Angeles que não estamos acostumados a ver nos filmes de Hollywood.
Com uma visão documental e intimista, Tangerine mostra a realidade de muitas mulheres transgêneros que vivem no submundo da prostituição. Um filme divertido e bonito, em que a contestação e a tristeza aparecem, quase sempre, nas entrelinhas.
Aqui, o desafio encarado pelo diretor é amplificado. Elaborar uma história que quebre com os arquétipos tradicionais do herói do cinema hollywoodiano não é fácil. Igualmente, inserir protagonistas transgêneros sem fetichizá-los ou tratá-los como algo “exótico”, muito distante do nosso cotidiano, não é tarefa simples. Mesmo as próprias questões sociais, que surgem naturalmente quando falamos de gênero, aparecem de maneira aparentemente secundária, já que a trama principal trata da busca vingativa por Chester e sua amante.
Em suma, o enredo movimenta-se em torno de uma traição. Um tema bastante abordado no cinema, base para qualquer filme, genérico ou não. Tangerine poderia ter protagonistas de qualquer gênero ou orientação sexual. Acontece que existe outro tema no filme, um mais subjetivo: a aceitação. O primeiro é o que vai mover a trama, é objetivo, faz a ação acontecer, é um gancho para o segundo tema. O segundo, a aceitação social e individual das personagens transgêneros, está ali, no cenário, nos diálogos, nas roupas e tem uma relação quase simbiótica com o primeiro tema.
Tangerine é um filme bom, com um humor dramático cativante e divertido, e suscita vários questionamentos sociais — que aparecem algumas vezes de forma escancarada e outras sutilmente: exemplo disso é quando um dos personagens é considerado gay por se relacionar com uma mulher trans. mas não espetacular. Mas não é um filme espetacular. Ainda, a produção tem um grande mérito técnivo: foi filmado com apenas três iPhones 5s. Muito bem recebido pela crítica, Tangerine foi indicado para diversas premiações e conseguiu vencer quatro delas.
Apesar de filmes como esse ficarem juntando poeira em alguma salinha da história do cinema, a esperança é que ele abra as portas para que outros diretores como Sean Baker sigam para além dos círculos do cinema independente. Sem a maquiagem de Hollywood, Tangerine mostra o mundo como ele é, nu e cru, e nos diz o quanto precisamos evoluir como seres humanos (vide as recentes ondas retrógradas e conservadoras). É um filme de personagens que não são a claridade azul do meio-dia nem a escuridão celeste da noite. São não-binárias. São tons quase infinitos de tangerinas.

Veja o trailer:

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